A expressão “em pecado me concebeu minha mãe” (ARC) vem do Salmo 51.5. Traduzido de modo mais claro pela NVI, nele lemos: “Sei que sou pecador desde que nasci, sim, desde que me concebeu minha mãe”. Aqui encontramos uma das doutrinas mais importantes da fé cristã. De fato, só o cristianismo ensina a doutrina do pecado original. Nascemos com “defeito de fábrica”. Somos pecadores por natureza. Isso significa que não nos tornamos perversos e maus por falta de educação e conhecimento.
Também não é verdade que a maldade tem origem na sociedade, na televisão e na influência perniciosa do cinema ou da internet. O fato é que nossa maldade brota de nós mesmos. O mal que contamina, como disse Jesus, vem do coração humano (Marcos 7.20,23). Para piorar nossa situação, a descrição bíblica ainda vai dizer que somos totalmente corrompidos. Nada se salva! Ao descrever a triste realidade da pecabilidade humana, Paulo escreve em Romanos 3.11,12: “Não há nenhum justo, nem um sequer; não há ninguém que entenda, ninguém que busque a Deus. Todos se desviaram, tornaram-se juntamente inúteis; não há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer”.
O pecado original foi muito bem descrito por Calvino. O teólogo francês o descreveu como a “depravação total da raça humana”. Desde que nossos pais pecaram no Éden, Adão e Eva transmitem a seus descendentes uma natureza pecaminosa permanentemente inclinada para o mal. É o resultado da queda. Quando lemos o Novo Testamento, descobrimos que essa natureza pecaminosa, chamada de carne por Paulo, permanece atuando na vida do cristão. A conhecida luta contra a carne é descrita de modo vívido por Paulo em Romanos 7. Mesmo o mais consagrado cristão não terá descanso nessa batalha, enquanto não chegar a plena redenção.
Apesar das inequívocas referências à natureza pecaminosa humana, muitas pessoas ficam confusas e até ressabiadas com as afirmações teológicas sobre o tema. Como se pode dizer que temos uma natureza totalmente depravada? Não somos capazes de boas ações? Quantos atos de solidariedade e bondade são feitos no mundo, inclusive por pessoas não-religiosas? Onde está a depravação humana no sorriso de uma criança?
É preciso deixar bem claro que nós, seres humanos, somos capazes de atos de bondade e de feitos agradáveis a Deus (como era o caso de Cornélio antes da conversão – Atos 10.4). O fato de sermos criados à imagem de Deus garante tais procedimentos justos e bons. É preciso ressaltar que a imagem de Deus permanece no ser humano, mesmo depois da queda (Tiago 3.9). O pecado atingiu a imagem de Deus no homem, mas não a destruiu. Diante disso, onde está a “depravação total”?
A realidade de nossa pecabilidade plena se mostra pela nossa incapacidade de fazermos qualquer obra livre de contaminação do pecado. Todas as nossas obras estão maculadas. O vetor condutor de nossas ações não é a glória de Deus, mas nosso próprio eu como centro de tudo. Assim, uma bela oração pode estar maculada por esnobismo. Uma pregação pode estar manchada por interesses pessoais. Um ato de caridade pode estar associado à vanglória. Além disso, nossa injustiça nos torna incapazes de redenção. Não podemos nos salvar e nada merecemos. Nossa melhor produção é “trapos de imundícia”, nas palavras de Isaías 64.6.
A importância de darmos atenção a uma questão teológica e doutrinária como essa está no fato de que há um clamor e uma crítica geral sobre a situação frágil da Igreja brasileira em sua firmeza doutrinária. Se não entendermos a doutrina do pecado, que nos distancia de humanistas, seculares, muçulmanos e judeus, não poderemos ser cristãos teologicamente responsáveis.
É preciso ressaltar que para se compreender a salvação trazida por Cristo (em sua plenitude), faz-se necessário entender o que aconteceu conosco na queda. A dimensão da redenção só faz sentido se compreendermos o que ocorreu conosco a partir do Éden. A princípio a queda do homem parece um fato puramente teológico. O homem desobedeceu a Deus, perdeu sua condição inicial e precisa de salvação para retornar à condição primeira. Todavia, a dimensão teológica não é única na queda. No próprio texto de Gênesis 3 vamos encontrar as outras dimensões que nos revelam a origem dos nossos problemas. Ao ser questionado por Deus sobre seu pecado, Adão culpa sua mulher: “Foi a mulher que me deste por companheira” (Gênesis 3.12). É a queda sociológica, quando o homem passa a ter uma ruptura com o próximo. A ampliação desta ruptura se vê na história de Caim e Abel (Gênesis 4), quando vemos a narrativa do primeiro homicídio.
Além da queda teológica e sociológica, a queda também tem sua dimensão psicológica. O homem e a mulher agora estão cheios de vergonha e vão esconder-se de Deus (Gênesis 3.7,8). A ruptura do homem consigo mesmo é decorrente do seu pecado contra Deus. Aqui começam os nossos problemas psicológicos e emocionais.
A quarta dimensão da queda é ecológica. A ruptura com a criação também fica estabelecida no texto de Gênesis. O texto é forte: “...maldita é a terra por sua causa; com sofrimento você se alimentará dela todos os dias da sua vida. Ela lhe dará espinhos e ervas daninhas, e você terá de alimentar-se das plantas do campo. Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó, e ao pó voltará” (Gênesis 3.17,19). Aqui começa nosso dilema ecológico. A ruptura do homem com a criação, muito antes do “aquecimento global”.
Diante da realidade das dimensões da queda do homem, podemos abrir a mente para entender a gloriosa redenção que há em Cristo. Ele não só veio perdoar os nossos pecados e trazer a salvação da alma, mas também trazer uma redenção que deve mudar beneficamente a sociedade, produzir sabedoria que auxilie nossa fragilidade psicológica e levar a efeito a renovação cósmica futura plena de toda a criação, como vemos em Romanos e em Colossenses (Romanos 8.19,22; Colossenses 1.19,20).
Compreender a doutrina do pecado original é, portanto, fundamental. Esta doutrina, devidamente compreendida, nos ajudará a compreender a nós mesmos e a encararmos nossa terrível maldade e fragilidade. Quando isso acontece, nosso senso de realidade nos permite uma convivência mais adequada com o semelhante. Nossas leis, fundamentadas na realidade, serão mais apropriadas para lidar com a realidade. Além disso, entender corretamente a questão nos livrará de dilemas pessoais terríveis em nossa jornada de santificação cristã. Quem entende o que é o pecado e o que é a salvação saberá lidar com essa tensão e com a tentação! Finalmente, sem entender o que aconteceu conosco e o que a obra de Cristo fez, trazendo restauração, jamais poderemos ser suficientemente gratos pela nossa salvação. Por isso, nunca deixe de ter a Bíblia ao seu lado, e os livros teológicos à mão.